O Fortaleza pode vir a se tornar uma “Atalanta brasileira”?
Uma comparação de contextos entre o Tricolor do Pici e a Dea
O Fortaleza encerrou o primeiro turno do Campeonato Brasileiro de 2021 na 3ª colocação com 33 pontos. São 9 vitórias, 6 empates e 4 derrotas, sendo a melhor campanha da história de um clube nordestino nos primeiros 19 jogos do Brasileirão de pontos corridos.
O time de Juan Pablo Vojvoda chama atenção pelo funcionamento bem definido, sempre em busca do protagonismo da partida. As vitórias em cima de Atlético Mineiro, Internacional, São Paulo e Palmeiras reforçam o motivo dos holofotes que a equipe vem recebendo desde o início do campeonato. Dessa forma, cabe comparações com outros cases de sucesso de equipes menores em âmbito nacional, como a Atalanta?
Para isso, precisamos entender o contexto inserido do time de Bérgamo-ITA. Assim como o Leão, a Dea era uma equipe que figurava entre divisões inferiores e elite nacional, mas sem tanto destaque nesta — guardadas as devidas proporções, afinal, a Atalanta possui mais títulos nacionais de divisões inferiores e uma Coppa Italia — e que passou por crises financeiras e administrativas em certos momentos de sua história.
Entretanto, o trabalho de crescimento e desenvolvimento da Atalanta dura anos, muito antes mesmo da equipe chegar no sucesso que é hoje. Após o título da Serie B de 2010/11, o clube ainda passou cinco temporadas na elite sem tanto destaque, figurando na segunda parte da tabela. Portanto, devemos compreender que não é um processo fácil e que, não necessariamente, o Fortaleza fará o mesmo sucesso que a equipe nerazzuri. É um projeto que demanda tempo e, principalmente, organização administrativa (na qual o tricolor mostra ter nos últimos anos).
O investimento na base e análise de scout
Para conseguir competir com clubes de maior poderio financeiro, maiores patrocínios, maiores cotas de TV e sem a ajuda de investidores milionários, a Atalanta se organizou para fazer o que qualquer organização futebolística de excelência tem que realizar: investimento na base e no scout. O principal nome desse projeto que visa o desenvolvimento de jovens se chama Fermo Favini, que comandou as operações de base do clube de 1990 a 2014, deixando um grande legado para o time e para o país.
La Dea possui uma ótima visão de mercado para dentro e fora da Itália, conseguindo adquirir jogadores por preços miseráveis e os vendendo por muitos milhões. Podemos citar jogadores como Kessié (32M €), Bastoni (31M €), Gianluca Mancini (21M €), Caldara (19M €), Gagliardini (22M €) e Andrea Conti (24M €), formados em Bérgamo e que deixaram o time rumo a gigantes do país (Milan, Inter, Juventus e Roma) por uma bela quantia (informada entre os parênteses). Recentemente, o time expandiu suas fronteiras e conseguiu negócios milionários com clubes da Premier League, como as vendas de Castagne para o Leicester, por cerca de 20M €, Amad Diallo para o Manchester United, por cerca de 21M €, e os mais recentes, que foram Gollini (15M €) e Cristian Romero (55M €, recorde). Esse é um dos principais fatores que deixam o time brigando ano após ano por grandes colocações no Campeonato Italiano.
Atenta-se ao olhar que o clube tem para mercados alternativos. O scouting da Atalanta é um dos melhores da Europa, pois o time adquire jogadores promissores de clubes pouco visados pelo público. No elenco atual, atletas como Gosens, vindo do Heracles Almelo-HOL, Hateboer, vindo do Groningen-HOL, Freuler, vindo do Luzern-SUI, Malinovskyi e Maehle, vindos do Genk-BEL, e Miranchuk, vindo do Lokomotiv Moscow-RUS, são grandes exemplos do trabalho de análise que os olheiros do clube tem com o redor do mundo, não se limitando apenas à Itália ou aos outros grandes centros do futebol europeu. Pode-se citar também a aquisição desses atletas para as categorias de base, como o albanês Djimsiti, que chegou das categorias de base do Zurich-SUI para a base nerazzuri, e os já vendidos Amad Diallo e Kulusevski, este vindo do futebol sueco e vendido para a Juventus por 35M €.
Outro fator a se destacar no projeto da Atalanta é o proveito das “oportunidades de mercado”, onde o time adquire jogadores muitas vezes renegados e os fazem render no seu estilo de jogo. O ex-goleiro titular, Gollini, chegou após fracasso no Aston Villa, o ex-capitão e ídolo Papu Gomez, vindo de temporada abaixo no futebol ucraniano, Cristante, revelação do Milan que não teve minutos nem no rossonero e nem no Benfica, e atletas do atual elenco, como Ilicic, que atuava na Fiorentina mas sem tanto destaque, Luis Muriel, que chegou após péssima passagem no Sevilla, e Pasalic, até então uma eterna promessa do Chelsea, são exemplos.
Desse modo, observa-se o que acontece fora do campo para se executar o sucesso da equipe italiana. O Fortaleza ainda não é um grande clube revendedor, pois começou (ou voltou) a ter um maior investimento na base recentemente. Atletas como Gustavo Coutinho, Vitor Ricardo, Nathan, Geilson, João Paulo, Habraão, Alix Vinicius, Wandson e Hércules, que vêm se destacando nas divisões de base, são jogadores contratados de outros clubes, por meio de análises de scout, para integrar especialmente as categorias juvenis. O esquema de jogo usado nas modalidades sub-23 e sub-20 se espelham no modelo usado por Vojvoda na equipe profissional, fazendo os jovens já compreenderem conceitos táticos do time antecipadamente.
O tricolor cearense também começa a abrir espaços no mercado sul-americano, com Valentin Depietri, vindo do Santamarina, clube da segunda divisão argentina, e Angelo Henríquez, que chegou após fim de contrato com a Universidad de Chile, sendo os principais exemplos disso. Além deles, o time teve interesse em outros atletas, como Ivan Torres, do Olimpia, Yonathan Andia, da Universidad de Chile, e Pablo Magnin, do Tigre.
Além disso, a maior semelhança do Leão com a Atalanta se refere nas oportunidades de mercado, afinal, ambos não possuem um grande poderio financeiro para investir em quem quiserem. A atual temporada foi o grande exemplo de atletas que conseguiram uma grande afirmação no Fortaleza depois de chegarem de graça ou empréstimo. Marcelo Benevenuto, Éderson, Titi, Yago Pikachu, Matheus Jussa, Lucas Crispim e Robson se destacam e são peças fundamentais para a ótima campanha do time.
Dentro das quatro linhas
O trabalho administrativo da Atalanta é de se tirar o chapéu. Mas de nada ele adiantaria sem um maestro na beira do gramado. De fato, Gian Piero Gasperini entrou para a história da Dea e do Calcio. Chegando na temporada 2016/17, após fiascos na Internazionale e no Palermo, o treinador elevou o patamar da equipe de Bérgamo. Em um esquema com três zagueiros, liberando dois alas com bastante ofensividade, Gasperini alcançou a 4ª colocação com a Atalanta, ficando a frente de times como Lazio, Milan e Inter. Era a primeira classificação do time para a Europa League. Duas temporadas depois, em 2018/19, os nerazzuri alcançariam a inédita 3ª colocação e o maior feito de sua história: classificação para a Champions League. Desde então, a equipe sempre pega a terceira posição da tabela e se classifica para o campeonato continental de clubes mais importante do mundo.
Mesmo em uma liga com grandes times, com elencos mais incorporados e maiores investimentos, a Atalanta de Gasperini se mantém firme e bate de frente com todas as equipes do campeonato. Isso se deve a um estilo de jogo que prioriza sempre o principal objetivo do jogo: o gol. Há três temporadas seguidas, o time detém o melhor ataque da competição, com destaque para 19/20, quando conquistou a incrível marca de 98 gols feitos.
O número dos jogadores ofensivos nas temporadas com Gasperini são impressionantes. Duván Zapata soma 66 gols e 31 assistências nas últimas três temporadas do Calcio, Coppa e Champions. Luis Muriel tem 46 gols e 12 assistências em 91 jogos pela equipe italiana. Malinovskyi, desde que chegou, possui 19 gols e 19 assistências em 89 partidas vestindo azul e preto. Ilicic possui 56 gols e incríveis 40 assistências com a camisa nerazzura. Outro personagem com número extraordinários, mas que não se encontra mais no clube, é Papu Gomez, com 59 gols e 71 (!!!) assistências pela equipe. O trabalho dos alas no esquema de Gian Piero também é notável. Andrea Conti, na temporada 16/17 da Serie A, marcou 8 gols e deu 4 assistências, números excelentes para um ala-direito. Em 18/19, o atual titular, Hans Hateboer, anotou 5 gols e 5 assistências no Calcio. Nesta mesma temporada, Timothy Castagne, reserva do time, teve 4 gols e 2 assistências. Porém, desta classe, o ala que mais impressiona com seus números é o alemão Robin Gosens, que já possui 27 gols e 20 assistências em 151 jogos pela Dea. Na última temporada, o ala-esquerdo titular teve a impressionante marca de 11 gols e 6 assistências na Serie A, depois de ter anotado 9 gols e 8 assistências na anterior.
Gasperini possui suas particularidades e próprias ideias de jogo, não podemos dizer que a Atalanta joga igual ao Fortaleza de Vojvoda por conta do futebol ofensivo e do esquema com 3 zagueiros. O argentino do Leão baseia-se fortemente em ideias de Marcelo Bielsa advindas dos anos 90. Porém, é possível encontrar semelhanças entre os times que os unem em um objetivo comum: a alta competitividade contra equipes mais fortes.
O Leão do Pici possui um ataque variado de opções, onde Vojvoda decide jogo a jogo quem irá a campo de acordo com o preparo físico e as características do adversário. Enquanto Gasperini tem de definir um trio com Zapata, Muriel, Ilicic, Malinovskyi, Pessina (e as vezes Pasalic), Vojvoda tem Robson, David, Wellington Paulista, Igor Torres, Angelo Henriquez, Matheus Vargas, Romarinho, Lucas Lima e Depietri como opções.
Os principais nomes do ataque tricolor possuem bons números. Desde a chegada do argentino ao comando técnico tricolor, Robson tem 7 gols e 4 assistências, David possui 7 gols e 1 assistência e Wellington Paulista soma 8 gols e 3 assistências. Os alas também são peças fundamentais do ataque tricolor, assim como ocorre no time de Gasperini. Yago Pikachu tem 7 gols e 7 assistências, e Lucas Crispim possui 5 gols e 8 assistências.
O que esperar do Fortaleza?
O Fortaleza é um time que está apenas no seu terceiro ano consecutivo na elite do futebol brasileiro. Com menores cotas de televisão, patrocínio e maior gasto de locomoção, por se localizar no extremo do Nordeste, o Leão precisa lutar contra equipes de grande poderio financeiro, com grandes infraestruturas e que possuem atletas com melhor porte físico e técnico. Entretanto, o time detém algo que grande parte dos clubes da Série A não possuem: administração de qualidade. Essa gestão organizada consegue quitar dívidas e dar uma saúde financeiras que muitos grandes do futebol brasileiro não têm. Isso se reflete no campo, com planejamentos futebolísticos que visam um futebol progressista.
Para equipes menores, não há outra fórmula de crescimento que não seja gestão de qualidade, desenvolvimento da base e a criação de uma identidade (e mentalidade) de jogo vencedora. O Fortaleza atualmente detém duas destas, e caminha para a terceira (base). É preciso se sobressair e não se acovardar dentro de campo diante de clubes claramente mais desorganizados. Uma equipe de menor porte não pode fazer aquilo que o público em geral imagina involuntariamente: deixar o maior ser protagonista. O Fortaleza do Vojvoda chega para praticar um futebol inteligente, ofensivo e bem treinado, tudo aquilo que é necessário para buscar a vitória. Diante de todas as adversidades, o Leão do Pici entra dentro de campo para superá-las e crescer a partir dos resultados.
Oscilações são completamente normais em qualquer equipe do mundo, ainda mais nas que se exigem uma concentração tática diferenciada, como o Fortaleza. Na primeira temporada de Gasperini, a Atalanta levou uma goleada inexplicável de 7x1 para a Inter de Milão, que não vivia sua melhor fase. Nem mesmo um placar deste porte foi capaz de abalar um time de pequeno investimento e jogadores poucos badalados, que, no final daquela temporada, terminaria em 4º, enquanto a Inter terminou em 7º. Dessa forma, conclui-se que a identidade de jogo formada pelo treinador é o mais importante na prática. O Fortaleza do Vojvoda irá perder jogos em alguns momentos, e serão mais doloridos que o normal, pois o torcedor agora entende do que o time é capaz, que é sempre buscar a vitória. O torcedor tricolor pode se orgulhar de ter um time corajoso e que tenta alcançar voos maiores. O futebol não foi feito para medrosos.
Então, o Fortaleza pode se tornar uma Atalanta brasileira? Guardadas as devidas particularidades e contextos, há sim um potencial. O clube precisa simplesmente seguir o belo rumo que parece tomar hoje.